Futebol de Origem // V. Guimarães 2 Sporting 2

Foi virado do avesso que o campeonato português regressou, aturdido por três meses de pandemia, recortes de violência extra-relvados, guerras intestinas nos bastidores e ecos de distopia nas bancadas nuas. Quem poderia adivinhar, após cinco jogos de retoma, que os únicos vencedores seriam, não Sporting, Benfica ou Porto, mas Famalicão e o aflito Portimonense? A ordem do futebol colapsou. O mundo está ao contrário.
Nesse sentido, a sabedoria convencional saiu de campo tão desconchavada como tudo o resto. Durante semanas, ouvimos todos dizer que futebol sem adeptos não fazia sentido. Que a retoma da Liga era uma loucura. Que jogar após tão longa paragem seria impossível. Mas o apito soou, a bola rolou, e quando isso sucedeu só ficou no ar a alegria dos jogadores e o entusiasmo dos adeptos, cada qual no seu poleiro. O futebol aconteceu, como num pelado escolar, reduzido à mais pura expressão de movimento, camaradagem e competição. Sem ruído, sem distracções, sem truques de circo, as figuras tristes ficaram para aqueles que, de fora, reclamam sobre a modalidade uma autoridade desproporcionada — prova de que o mal do desporto não jaz nos seus executantes, como tantas vezes no-lo querem fazer crer, mas sim na economia de bajuladores que vivem da poeira que eles próprios levantam: presidentes, empresários, comentadores, claques.
Para o Sporting, regressar aos relvados nestas circunstâncias constituiu uma novidade refrescante. Sem a Juve Leo no topo sul a amolar as navalhas desde o 1º minuto, e sem a turba vimaranense a proporcionar a habitual salva de cadeiras e escarretas, o colectivo leonino entrou em campo ligeiramente encandeado pela nudez insólita de tudo, por instantes confuso com as dimensões gigantescas que a bola — e apenas a bola — tomou perante um mundo em retirada.
Ainda assim, passado o bluff inicial do adversário, o futebol dos leões oscilou sempre entre o matreiro e o ponderado, o sábio e o distraído, com alguns momentos de entendimento promissor, embalado por uma condição física invejável para quem reduzira a sua actividade física, nos últimos dois meses, a um regime de viagens achineladas entre o frigorífico e o bidé.
Se o Sporting titubeou, o mesmo se deveu a pecados como o egoísmo juvenil de alguns homens dianteiros, cerimónia defensiva ou o estranho vírus que tem afectado os guarda-redes — de todos os intervenientes os mais estáticos, e talvez por isso os mais susceptíveis a inalarem a apatia que soprava do lado das bancadas.
Falhas, mas falhas perfeitamente entendíveis à luz das circunstâncias, e, não obstante, insuficientes para ensombrarem a afirmação inequívoca de Sporar, as estreias positivas de Quaresma e Matheus, ou a exibição fulminante de Jovane.
Para quem esperava que o futebol fosse hoje uma coisa diferente, a surpresa deverá ser como este tem a capacidade de sobreviver nos cenários mais improváveis, e a forma como estamos a reaprender a apreciá-lo à luz dos seus pergaminhos originais.
Já para o Sporting, este ambiente de pré-época era exactamente o que faltava a um clube a precisar de pacificação e um treinador a precisar de tempo para reordenar prioridades antes de uma época seguinte que será inevitavelmente moldada à imagem das restrições emergentes.
